segunda-feira, 21 de abril de 2008

O intrincado quebra-cabeça da saúde do trabalhador

O maior estudo já conduzido sobre saúde no local de trabalho está aplicando técnicas de última geração para investigar uma aparente concentração de casos de câncer – e mostrando por que a ciência nem sempre nos protege no trabalho

por Carole Bass

No tempo de John Shea e John Greco a cavernosa fábrica da Pratt & Whitney Aircraft era coberta por uma névoa oleosa que exalava da máquina de amolar, revestindo o teto e cobrindo os trabalhadores. Eles voltavam para casa encharcados de óleo. Fossas de remoção de gordura, cheias de solvente para limpar peças de motor, se espalhavam pelo chão da fábrica; os trabalhadores usavam latas de solvente para limpar mãos e roupas. Shea passou 34 anos amolando lâminas e pás de motor na fábrica de quase 93 mil m2 em North Haven, Connecticut, Estados Unidos. Em 1999, aos 56 anos, recebeu o diagnóstico de câncer no cérebro. Seis meses depois, seu amigo e colega de trabalho Greco descobriu que estava com a mesma doença: glioblastoma multiforme (GBM), o tipo mais agressivo de tumor cerebral. Um ano após o diagnóstico de Shea, ambos estavam mortos, mas as viúvas já se perguntavam sobre o número aparentemente incomum de casos dessa forma letal de câncer na fábrica de um dos maiores produtores de motores de jato do mundo.

O que começou em 2001 como uma investigação sobre um aparente agrupamento de casos de câncer no cérebro em North Haven – 13 casos de tumor cerebral maligno primário entre os trabalhadores, 11 deles glioblastoma, apenas na década anterior – tornou-se o maior estudo de saúde no trabalho já conduzido. Uma equipe liderada pelos pesquisadores Gary Marsh, da University of Pittsburgh, e Nurtan Esmen, da University of Illinois em Chicago (UIC), está engajada para resolver um complexo quebra-cabeça: primeiro, os pesquisadores têm de rastrear um número ainda desconhecido de casos de câncer no cérebro entre quase 250 mil funcionários de oito fábricas da Pratt & Whitney por um período de 50 anos e então determinar, se possível, o que pode ter provocado o tumor, fazendo uma reconstituição das exposições dos trabalhadores a uma miríade de agentes potencialmente tóxicos. O grupo espera publicar os resultados preliminares entre meados deste ano e o próximo.

A tarefa de Marsh e Esmen ilustra a dificuldade de estudar a epidemiologia do local de trabalho, envolvendo múltiplas exposições em várias fábricas. A capacidade dos pesquisadores de fornecer respostas concretas sobre o que aconteceu com os trabalhadores no passado também será limitada por um entendimento científico incompleto, tanto acerca dos desencadeadores de tumor cerebral quanto sobre a toxicidade de muitas substâncias químicas usadas no setor. O estudo poderia esclarecer ambos os assuntos utilizando as técnicas disponíveis mais sofisticadas. A investigação também destaca o fato de que determinar níveis seguros de exposição a substâncias tóxicas no local de trabalho permanece um desafio ainda hoje.

O National Institute for Occupational Safety and Health (Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional) dos Estados Unidos estima que quase 49 mil americanos morrem de forma prematura todos os anos por doenças relacionadas ao trabalho – mais de oito vezes o número de mortes por acidentes no local de trabalho. No entanto, a maioria dos limites federais de exposição no trabalho é da década de 60. Como resultado, as diretrizes mais novas da Agência de Proteção Ambiental americana para os níveis seguros de substâncias químicas no ar fora da fábrica chegam a ser 45 mil vezes menores que os níveis regulamentares para o ar dentro da fábrica estabelecidos pelo Departamento de Saúde e Segurança Ocupacional (Osha, na sigla em inglês). Política e economia, e não limitações científicas, podem ser as maiores barreiras para a atualização da proteção à saúde desses trabalhadores. Dessa forma, a investigação da Pratt & Whitney também ilustra como a epidemiologia ocupacional poderia ser melhor se existisse vontade política para tornar a ciência moderna uma aliada.

Reunindo Evidências

Quando os maridos receberam o diagnóstico do mesmo tumor, Carol Shea e Kate Greco não sabiam nada sobre câncer no cérebro ou epidemiologia. Mas como parecia uma coincidência improvável começaram a exigir respostas da Pratt & Whitney: quantos outros trabalhadores tinham câncer no cérebro? O que pode ter provocado isso? Em agosto de 2001, uma investigação da Secretaria Estadual de Saúde Pública de Connecticut descobriu que a incidência de glioblastoma entre os trabalhadores da fábrica de North Haven nos dez anos anteriores correspondia entre 2,8 vezes e sete vezes a taxa esperada.

Àquela altura a Secretaria Estadual de Saúde pediu que a Pratt & Whitney, que se recusou a fazer comentários para este artigo, contratasse um epidemiologista independente para investigar o fato mais a fundo. A empresa procurou Marsh, bioestatístico da Graduate School of Public Health da University of Pittsburgh. Marsh é especialista em pesquisas de saúde em locais de trabalho “bagunçados e atolados de serviço”, com dezenas de milhares de trabalhadores e vários locais de trabalho. Ele imediatamente entrou em contato com Esmen, especialista em avaliar e reconstituir exposições no local de trabalho, com quem colabora com freqüência.

A dupla inicialmente enfocou a fábrica de North Haven, fechada em 2002. Mas quando descobriu que a empresa fazia trabalhos semelhantes em outras fábricas em Connecticut, decidiu avaliar todas as oito unidades. Assim, um estudo inicialmente projetado para abordar cerca de 100 mil empregados cresceu para uma investigação de sete anos, US$ 12 milhões e quase 250 mil trabalhadores no período de 1952 a 2001.

O projeto maior tem duas vantagens científicas, considera Marsh: maior poder estatístico, o que reduz a chance de resultados falso-negativos e aumenta a probabilidade de detectar padrões sutis; além de melhor comparação entre as práticas internas de trabalho, exposições e conseqüências para a saúde. A epidemiologia ocupacional muitas vezes sofre com o chamado “efeito trabalhador sadio” – comparar de forma enganosa as taxas de doenças em um grupo de trabalhadores com as da população em geral, que inclui pessoas que estão doentes demais para trabalhar.

Mas o tamanho avantajado do estudo também representa um dos maiores desafios para os pesquisadores. Trabalhando sob a supervisão da gerente de projetos Jeanine Buchanich, funcionários da University of Pittsburgh passaram um ano na Pratt & Whitney analisando meio milhão de páginas de registros de pessoal e as resumindo em uma base de dados de informações de status vital dos funcionários. Em seguida, Buchanich começou a rastrear os cerca de 266 mil nomes – coletivamente conhecidos como a coorte – em bases de dados nacionais para saber quais empregados haviam morrido e de quais causas. Um programador de computadores desenvolveu um protocolo para produzir amostras dos nomes de listas de membros de sindicatos, que Buchanich comparou com a coorte para checar se faltava alguém. Ela também teve de corrigir entradas da base de dados cujas datas não faziam sentido: “O arquivo da coorte estava fantasticamente limpo”, diz Buchanich – com uma taxa de erro de menos que 0,1% – “mas ainda assim eram algumas centenas de erros que tive de encontrar e resolver”. Após eliminá-los e aprimorar ainda mais a base de dados, a coorte agora inclui cerca de 224 mil empregados. Enquanto isso, o gerente de caso, Zb Bornemann, vem procurando registros de câncer no cérebro. Ele investigou toda a coorte no Registro Nacional de Óbitos americano e no Registro de Óbitos do Seguro Social. E continua a entrar em contato com registros estaduais de câncer em todo o país, verificando se nomes da coorte coincidem com registros de pessoas com tumores cerebrais. Quando detecta um nome Bornemann tenta rastrear o parente mais próximo por meio de bases de dados on-line. Uma vez que Bornemann consegue localizar o parente próximo ou, ocasionalmente, a pessoa viva com câncer no cérebro, envia uma carta convidando a participar do estudo: uma entrevista por telefone, registros médicos e permissão para analisar tecido do tumor cerebral da pessoa.

Encontrar os casos faz parte da primeira parte do estudo – análise de mortalidade – que vai determinar se houve ou não uma taxa de incidência de câncer no cérebro maior que a esperada entre os trabalhadores da Pratt & Whitney, como um todo e entre vários subgrupos. A segunda parte é um estudo de caso-controle aninhado, no qual os pesquisadores comparam cada caso de câncer no cérebro com um empregado da Pratt & Whitney da mesma idade, gênero e ano de contratação, e que não desenvolveu a doença. Comparando seus históricos médicos e de trabalho, incluindo a avaliação de exposição que Esmen está desenvolvendo na UIC, os pesquisadores esperam detectar padrões que possam explicar por que os tumores cerebrais ocorreram em certas pessoas.

O neuroncologista Frank Lieberman, da University of Pittsburgh, está avaliando mutações gênicas no tecido dos tumores cerebrais dos empregados da Pratt & Whitney. Encontrar um padrão distintivo poderia sugerir que o tumor dos empregados da companhia não foi aleatório, mas compartilhou alguma causa.

Aqui, parte da ciência é bastante nova. Lieberman está trabalhando com tecido tumoral embebido em parafina, guardado há anos em hospitais onde os pacientes com câncer da Pratt & Whitney haviam sido submetidos a cirurgias. Até recentemente isso significava que ele estaria limitado a métodos que permitem o exame de apenas 15 a 20 genes por amostra para detectar mudanças que estão sabidamente envolvidas no crescimento do tumor. Agora, graças à melhoria tecnológica, ele pode também usar técnicas de micro arranjo previamente disponíveis apenas para tecidos frescos, que permitem examinar milhares de genes por vez, procurando pequenas mutações, bem como deleções ou duplicações de genes inteiros. “Podemos procurar mudanças nos padrões [de atividade genética]”, diz, “e não apenas por alterações maiores ou menores em genes específicos.” Lieberman está comparando esses perfis com uma base de dados do National Cancer Institute e amostras de tumores cerebrais de pacientes de sua clínica na universidade, como controles. “Essa é uma técnica muito poderosa”, assegura, em parte porque os pesquisadores “não têm de contar necessariamente com uma hipótese inicial acerca dos genes que são importantes.”

Emanuela Taioli, colega de Lieberman da University of Pittsburgh, utiliza técnicas moleculares semelhantes para identificar danos ao DNA provocados por carcinógenos específicos conhecidos. Os dois grupos estão trabalhando juntos em um esforço piloto para coletar tecidos normais dos trabalhadores da Pratt & Whitney com câncer cerebral, na esperança de detectar quaisquer mudanças moleculares no tecido e correlacioná-las aos carcinógenos que a equipe de Esmen está detectando na empresa. Em princípio, essas impressões digitais da exposição a substâncias tóxicas poderiam representar os passos iniciais rumo ao câncer. A ciência por trás dessas estratégias “é ainda muito nova”, adverte Lieberman. “Estamos tentando aproveitar a oportunidade para obter o máximo de informação acerca de possíveis desencadeadores de câncer de cérebro. Mas as técnicas ainda são extremamente experimentais.”

Arqueologia Industrial

O trabalho da equipe de Esmen em Chicago é menos experimental, mas tão monumental quanto. O grupo passou cinco anos investigando as operações da Pratt & Whitney da década de 50 até a de 90, tentando descobrir quais empregados estavam expostos a que substância e em que níveis. “Se os dados não estão aqui, têm de ser reconstituídos”, diz Esmen, professor de ciências da saúde ocupacional e ambiental da School of Public Health da UIC. “É quase como se fosse uma arqueologia industrial.”

Há muito cientistas suspeitam de uma origem ocupacional de câncer no cérebro. Mas a única causa comprovada é a radiação ionizante, que algumas operações da Pratt & Whitney de fato geravam. Além disso, uma lista de suspeitos vem de estudos anteriores que encontraram altas taxas de câncer cerebral entre pessoas que trabalhavam com certos metais, óleos de máquinas e solventes, mas cujos resultados não foram replicados de forma consistente. Trabalhando com os registros da Pratt & Whitney, a equipe de Esmen está tentando reduzir 320 mil tipos de cargos a um número manejável de categorias mais amplas de trabalho. Para cada uma delas, os pesquisadores tentam quantificar a exposição dos trabalhadores aos agentes suspeitos durante vários períodos de tempo.

Entretanto, os números são apenas relativos. “O importante é colocar as coisas na ordem certa”, avalia Esmen. Se os pesquisadores estimarem que o nível de uma exposição determinada foi de 10 unidades, “não se sabe se foi na verdade de 6 ou 12 – mas definitivamente não foi de 100”. Já que não existem medidas, os pesquisadores se baseiam em entrevistas com trabalhadores e engenheiros das fábricas. Eles também utilizam uma montanha de dados fornecidos pela empresa, como registros de compras – para saber as quantidades de material utilizado –, estudos de eficiência da década de 70 – para conhecer a quantidade de tempo gasta em dada tarefa –, publicações internas com títulos como Uma capacidade versátil de engenharia e produção, e qualquer amostragem de ar que a Pratt & Whitney tenha feito ao longo desses anos.

A última informação pode parecer uma rica fonte para a reconstituição das exposições. Mas é mais complicado que parece. Um epidemiologista que está tentando avaliar as exposições em todos os empregados coletaria amostras aleatórias de cada grupo de trabalho e documentaria mudanças entre turnos, e de um dia para o outro. Um higienista industrial chamado para resolver um problema – como queixas respiratórias – obteria amostras apenas da “área problemática” e consideraria apenas os níveis mais altos de uma substância suspeita.

Tratados de higiene industrial instruem seus futuros praticantes a coletar toda gama de amostras, diz o pesquisador Steve Lacey, que ensina essas técnicas a estudantes de pós-graduação na UIC. “Mas essa não é a realidade.” Roger Hancock, outro membro da equipe, que passou um quarto de século trabalhando com higiene industrial no setor privado, conhece a realidade: “Você chega a uma fábrica com um carrinho cheio de equipamentos [de teste], e tem uma semana. Talvez estejam executando o processo apenas uma vez por semana, de modo que você tem uma chance para coletar a mostra. Se a maior delas estiver aquém dos níveis preocupantes, você não pega mais amostras”.
“Aquém dos níveis preocupantes” significa níveis legais. Se um local de trabalho está nos padrões do Osha, isso já está bom o bastante. Mas pesquisadores da academia e livros médicos reconhecem que o que é bom o suficiente para o departamento nem sempre é o bastante para proteger a saúde dos trabalhadores.

Determinar os níveis seguros de exposição não é fácil, reconhece Terry Gordon, que preside o comitê da American Conference of Governmental Industrial Hygienists – órgão que estabelece os limites de exposição voluntária para substâncias químicas. Como o Osha, sua equipe de cerca de 20 voluntários não conduz pesquisas originais, mas se baseia em estudos já publicados. Pesquisas de toxicologia animal, com condições controladas em laboratório, são mais organizadas que a turva epidemiologia de pessoas de verdade expostas a níveis desconhecidos de combinações de várias substâncias, tanto dentro quanto fora do local de trabalho. Mas os estudos com animais também têm um ponto fraco: medem o efeito de uma substância por vez, enquanto o local de trabalho geralmente contém múltiplos tóxicos. “Dados sobre pessoas são sempre preferíveis para a toxicologia”, diz Gordon, professor e pesquisador do departamento de medicina ambiental da New York University. Mas, “com dados sobre humanos, freqüentemente não há informações suficientes sobre a exposição, e muitas vezes eles não são ligados aos efeitos sobre a saúde”.

Os pesquisadores da Pratt & Whitney estão fazendo o melhor que podem para evitar essas ciladas, mas reconhecem que alguns dos elementos tornam esse estudo “confuso”, como diz Marsh. Devido ao fato de Bornemann ter informações incompletas dos registros estaduais de câncer, provavelmente não detectará alguns casos de câncer cerebral. Entre os pacientes que localizou, 41% concordaram em participar; Marsh quer pelo menos 60% para assegurar a validade científica. Ele também ressalta que, apesar de as lembranças que os participantes têm de seu histórico médico e de estilo de vida serem “razoavelmente boas em um nível mais amplo, elas não valem muito quando precisamos de abordagens mais detalhadas”. E a reconstituição da exposição da equipe da UIC, apesar de toda sua meticulosidade, será apenas uma estimativa do que aconteceu décadas atrás nas fábricas, que desde então foram fechadas ou drasticamente reorganizadas.

Início na Direção Certa

Depois de sete anos e US$ 12 milhões investidos, existe uma boa chance de que o estudo da Pratt & Whitney vá acabar como várias outros estudos sobre saúde no local de trabalho: inconclusivo. Pesquisadores dizem que o fenômeno é fruto da dificuldade da ciência. Como todos os estudos epidemiológicos, este pode, na melhor das hipóteses, provar associações entre exposições e efeitos na saúde, mas não uma relação restrita de causa e efeito. É particularmente difícil detectar as causas de doenças como câncer, que geralmente aparece décadas depois da exposição danosa. E achar níveis seguros de exposição a determinados carcinógenos pode ser impossível.
Muitos pesquisadores adorariam ter US$ 12 milhões para estudos que pudessem produzir resultados mais claros em menos tempo, mas os milhões da Pratt & Whitney provavelmente não teriam sido gastos de outra maneira na pesquisa da saúde no local de trabalho. Mesmo se o estudo nunca der respostas definitivas a todas as questões levantadas, o esforço dificilmente terá sido desperdício de tempo ou dinheiro.

Para começar existe a perspectiva de algum tipo de resposta para as famílias dos trabalhadores da Pratt & Whitney. “Estou envolvido nesse projeto desde o dia em que ele começou”, diz Jeanine Buchanich. “Finalmente vamos poder dizer algo a esses trabalhadores – e já faz muito tempo.”

Independentemente dos resultados específicos, o projeto pode ser capaz de nos dizer algo. A enorme quantidade de dados que está gerando pode ajudar a desvendar as complexidades de múltiplas exposições a substâncias tóxicas e contribuir, nas palavras de Lieberman, para a compreensão “da biologia básica de como os tumores cerebrais se iniciam”. Além disso, o objetivo sem precedentes do estudo está estimulando a criação de novas técnicas para manipular a imensa quantidade de informações. A equipe da UIC, por exemplo, está construindo uma base de dados de um sistema de informação geográfica (SIG), que permitirá aos membros da equipe mapear as operações das fábricas no tempo e espaço. Essa tecnologia pode ser útil para qualquer estudo em que relações espaciais são importantes, como na arqueologia ou engenharia industrial, de acordo com Esmen.

Essa empreitada arqueológica ao passado industrial de Connecticut pode gerar ferramentas e informações para ajudar trabalhadores e pacientes com câncer no cérebro no futuro. Assim, pode contribuir para reduzir as barreiras científicas que existem entre operários e locais de trabalho saudáveis. Para reduzir as barreiras não-científicas, outro conjunto de ferramentas será necessário.

“Os maiores riscos evitáveis à saúde e segurança que precisam ser resolvidos em nossa sociedade ocorrem de forma desproporcional no local de trabalho”, escreveu Adam Finkel, um ex-diretor de padrões de saúde do Osha, em uma carta no maio passado para a deputada da Califórnia Lynn Woosley, que preside o Subcomitê da Câmara para Proteção da Força de Trabalho. “A solução não é se queixar sobre a necessidade de fazer boa ciência, mas sim simplesmente voltar a fazer boa ciência, como o Osha costumava fazer.”

CONCEITOS-CHAVE

■ Uma pesquisa de sete anos sobre casos de câncer no cérebro entre funcionários da Pratt & Whitney Aircraft, no estado americano de Connecticut, se tornou o maior estudo já realizado sobre a saúde no local de trabalho, incluindo cerca de 224 mil trabalhadores em um período de 50 anos.

■ A enorme escala do estudo tornou a coleta de dados trabalhosa, mas o tamanho da população do estudo deve também aumentar a capacidade das análises de detectar padrões sutis que podem apontar as causas dos tumores, até mesmo fatores previamente desconhecidos.

■ Mais estudos de epidemiologia industrial desse tipo poderiam melhorar medidas de proteção à saúde dos trabalhadores, já que muitas delas estão desatualizadas. Mas ainda falta financiamento e apoio político para essas pesquisas.
– Os editores

[COLETA DE EVIDÊNCIAS] CONSTRUINDO AS BASES DE DADOS

Para determinar se um número maior que o normal de casos de câncer no cérebro surgiu entre os trabalhadores da Pratt & Whitney Aircraft e, em caso afirmativo, suas razões, os pesquisadores passaram mais de cinco anos compilando um enorme volume de informações sobre todos os funcionários e processos de fabricação da empresa de Connecticut referentes a um período de 50 anos. Uma das duas equipes da pesquisa tentou identificar a população de estudo, ou coorte, e determinar quantas pessoas desse grupo desenvolveram câncer cerebral, separando e rastreando os nomes de mais de 250 mil empregados. Enquanto isso, a outra equipe investigou uma ampla variedade de fontes para descobrir a que substâncias os empregados foram expostos entre 1952 e 2001 no trabalho.

DEFININDO O ACÚMULO DE CASOS DE CÂNCER

Um número aparentemente anormal de casos de câncer que ocorre em um determinado período de tempo entre pessoas que vivem ou trabalham juntas pode acontecer por acaso. Mas um acúmulo aparente pode também indicar que as doenças têm uma origem comum. A parte de análise de mortalidade da pesquisa da Pratt & Whitney vai lançar mão de técnicas estatísticas “para determinar se o número total de malignidades e/ou mortes observadas é maior que o esperado, com base em comparações padronizadas com a população geral de todos os Estados Unidos, do estado de Connecticut e regiões do estado de onde os trabalhadores são provenientes, e determinar se um eventual excesso observado provavelmente se deve apenas ao acaso”.

O Osha fica para trás

Entenda isso”, diz Roger Hancock, membro da equipe de estudo da Pratt & Whitney: os padrões atuais do Departamento de Saúde e Segurança Ocupacional (Osha) “eram os dados toxicológicos mais atuais de 1968.” Ele não está brincando.
O Osha foi inaugurado em 1971 com uma obrigação estatutária: “Assegurar o máximo possível de condições de trabalho seguras e saudáveis a todo homem e toda mulher trabalhadora”. A organização adotou limites permitidos de exposição (LPEs) para cerca de 400 substâncias químicas de uma só vez, de acordo com padrões industriais voluntários. Esses padrões haviam sido desenvolvidos pela organização sem fins lucrativos American Conference of Industrial Hygienists (ACGIH) em 1968. Durante o restante da década de 70, o Osha estabeleceu limites de exposição para outras nove substâncias.

No entanto, na década seguinte, o expresso LPE descarrilou. Em 1980, a Suprema Corte dos Estados Unidos vetou um padrão do Osha que reduzia os níveis permitidos de benzeno em uma ordem de magnitude, alegando que a agência tinha de provar que essa regulamentação impediria “um risco significativo de danos”. Sem definir “risco significativo”, a corte sugeriu que uma morte adicional para cada mil trabalhadores expostos provavelmente era significativo – mas não era o caso de uma morte para cada 1 bilhão de operários. Desde então, o Osha tem considerado o número de um para mil como o padrão mais exigente possível. Alguns LEPs permitem riscos muito mais graves: por exemplo, o limite de 2006 para o cromo hexavalente, estabelecido sob ordem judicial, corresponde a um risco de câncer de 35 a 45 por mil pessoas, de acordo com estimativas do Osha.

Em 1987, o Osha fez uma ampla atualização de seus limites para contaminantes do ar. Dois anos depois, estabeleceu LEPs para 376 substâncias químicas. Mais da metade desses eram padrões mais restritivos para substâncias da lista original de 1971; o restante incluía substâncias recém regulamentadas. Mas a indústria e os trabalhadores mudaram a lei, e em 1992 um apelo à instância federal a derrubou, determinando que o Osha teria de apresentar procedimentos de limitação separados para cada substância. Mas a organização nunca o fez.

Apesar das dificuldades científicas, a ACGIH continua estabelecendo regularmente de 20 a 40 limites de exposição voluntários (TLVs, em inglês) por ano. O resultado é que os TLVs compreendem mais de 700 substâncias químicas, em comparação às 400 que o Osha regula. “Nunca tem fim, porque sempre há mais informação”, diz Terry Gordon, que lidera o esforço do TLV. “Somos voluntários fazendo o nosso melhor. Se pudéssemos passar a bola para o Osha, seria ótimo.”

Em respostas escritas a leitores da SCIENTIFIC AMERICAN, o Osha enfatizou que “atualizar um limite de exposição não é uma tarefa simples”. Atender aos fardos impostos pelo Congresso e tribunais requer “grande quantidade de pesquisas” e “recursos significativos para caracterizar de forma adequada o efeito dos LEPs revistos sobre os riscos à saúde dos trabalhadores e avaliar a viabilidade, de forma a assegurar que os padrões revistos são necessários, serão efetivos em proteger trabalhadores de riscos à saúde no local de trabalho e passíveis de utilização por todos os funcionários”. Para o cromo hexavalente, o Osha diz ter adotado “o menor nível plausível”, baseado na “totalidade das evidências nos registros de regulamentação”.

Mas o Osha poderia fazer bem mais, na visão de alguém que já trabalhou lá. Harry Ettinger, higienista industrial, liderou a iniciativa da era Reagan de atualização dos limites de contaminantes do ar. “É uma vergonha” que a maioria dos LEPs ainda datem de 1968, reclama. “Tentei convencer os trabalhadores a não nos processar. Eles queriam a perfeição. Perfeição não existe.”

Para outro ex-funcionário do Osha, Adam Finkel, o problema está nas prioridades. “A maioria das pessoas que sabem o que estão falando concordaria que a saúde ocupacional [é responsável] por 80% a 90%” das mortes relacionadas ao trabalho, diz Finkel, que foi o diretor de padrões de saúde da agência entre 1995 e 2000. Ainda assim, “a ênfase sempre foi em segurança”, e não na saúde. Ele próprio foi forçado a sair do seu emprego após ter chamado atenção para os danos que ameaçavam a saúde dos inspetores do próprio Osha; ao final, a agência entrou em um acordo com valor de seis dígitos para abafar sua queixa indiscreta. Longe de ser um perfeccionista, ele acredita que “a agência tem simplesmente de chegar ao nível da ciência do final do século 20. Sabemos que muitos agentes têm exposição permitida mil vezes maior que aquela que deveria ser”. Com padrões tão ruins, Finkel diz, a primeira prioridade do Osha deveria ser “higiene industrial à moda antiga”.

De qualquer modo, “a grande quantidade de pesquisas” e os “recursos significativos” que o Osha alega serem necessários para atualizar a proteção à saúde do trabalhador têm de vir de algum lugar. Com bastante freqüência, os interesses industriais que seriam os objetos dessas regulamentações são os mesmos que pagam pelos estudos. Na área de saúde no local de trabalho, o orçamento de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional está estagnado ou em declínio. E os fabricantes não apenas se opuseram as regulamentações governamentais, mas também levaram a independente ACGIH ao tribunal, tentando impedir que ela divulgasse seus limites de exposição não-obrigatórios. – C. B.

BREVES

■ Em média, quase 16 trabalhadores morrem de lesões sofridas no trabalho, e 134 morrem de doenças relacionadas ao trabalho nos Estados Unidos todos os dias.

■ Estima-se que 11.500 trabalhadores do setor privado sofrem com uma lesão ou doença não fatal relacionada ao trabalho todos os dias.

■ Nove mil trabalhadores são tratados em pronto-socorros em virtude de lesões ocupacionais todos os dias.

FONTE: Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional dos Estados Unidos

Amostras de tumor

Com o consentimento dos trabalhadores afetados ou de sua família, os pesquisadores obtiveram amostras dos tumores e, em alguns casos, de tecidos normais, para procurar sinais de dano ao DNA que pudesse ter sido provocado por carcinógenos (esquerda). Ao combinarem esses resultados com as informações sobre a quais substâncias os trabalhadores foram expostos e quando (direita), eles esperam revelar se as exposições no local de trabalho contribuíram para o aparecimento dos cânceres.

PISTAS GENÉTICAS

Modificações, ou mutações, do DNA isolado de amostras de tumores como as mostradas na tela do computador podem indicar o que desencadeou o tumor.

■ Um padrão distintivo de mutações nos tumores de diferentes trabalhadores pode sugerir uma causa comum, por exemplo.

■ Essas análises podem também determinar a duração das mudanças cumulativas e mesmo a ordem na qual as mudanças ocorreram, de forma a ajudar a identificar quando o crescimento tumoral provavelmente teve início.

■ Certos carcinógenos conhecidos provocam danos ao DNA de formas específicas, deixando uma digital da exposição em células tumorais ou até em tecido normal.

■ Mutações em genes para enzimas metabolizadoras de carcinógenos são outra categoria de alterações promotoras de câncer detectáveis em tecidos não-cancerosos que poderiam explicar como um tumor foi iniciado.

VISUALIZANDO AS EXPOSIÇÕES

Para manipular as enormes quantidades de dados que coletaram sobre as operações das fábricas entre 1952 e 2001, os pesquisadores criaram um “sistema de informação geográfica”. A base de dados permite que eles recuperem e relacionem dados sobre a localização dos funcionários, peças e processos – e, portanto, a exposição dos trabalhadores a agentes potencialmente tóxicos – em diferentes épocas durante o período incluído no estudo.

PARA CONHECER MAIS

Workers at risk: the failed promise of the occupational safety and health administration. Thomas O. McGarity e Sidney A. Shapiro. Praeger Publishers, 1993.

Occupational and environmental health: recognizing and preventing work-related disease and injury. Editado por Barry S. Levy, David H. Wegman, Sherry L. Baron e Rosemary K. Sokas. 5a edição. Lippincott Williams & Wilkins, 2005.

Doubt is their product: how industry’s assault on science threatens your health. David Michaels. Oxford University Press, 2008.

Getting home safe and sound: Osha at 38. Michael Silverstein, em American Journal of Public Health (em impressão).

Relatório do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos sobre agrupamentos de casos de câncer: www.cancer.gov/cancertopics/factsheet/Risk/clusters

Informações sobre a investigação da Pratt & Whitney estão disponíveis no site da Secretaria de Saúde Pública do estado de Connecticut, no endereço:
www.ct.gov/dph/cwp/view.asp?a=3140&q=387474


Carole Bass é jornalista investigativa e escreve sobre saúde pública, questões legais e meio ambiente. É membro da Alicia Patterson Foundation, investigando e escrevendo sobre substâncias químicas tóxicas no trabalho. Bass é ex-repórter e editora do New Haven Advocate, para o qual escreveu muito sobre os casos de câncer no cérebro na Pratt & Whitney Aircraft , bem como para o Connecticut Law Tribune.

http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/o_intrincado_quebra-cabeca_da_saude_do_trabalhador.html

2 comentários:

Anônimo disse...

Indico, nessa tematica, como trabalho da maior importância, no Brasil, a tese de doutoramento de June Maria Passos Rezende, pela Unicamp, intitulada: "Caso Shell/Cyanamid/Basf: epidemiologia e informação para o resgate de uma precaução negada". Leitura imperdível.

Anônimo disse...

Oi Lígia. Valeu pela dica. Continue acessando o nosso blog e sugerindo leituras e temáticas. Obrigado!!!